Matéria publicada na Revista dos Vegetarianos em 2008. Enjoy! É sobre o a história do hábito humano de comer carne...

Uma viagem no tempo
O consumo atual de carne, e sua banalização em diversas culturas, podem ser explicados através da história humana. Da veneração nos antigos rituais de magia à total falta de ética no trato para com os animais, a carne, e tudo que envolve sua ”produção” faz com que percebamos como é urgente mudar os hábitos que regem as atitudes da maioria da população mundial
Por Nanci Dainezi
Existem registros de que a prática do vegetarianismo começou nos remotos tempos pré-históricos, há 5 milhões de anos, com nosso mais antigo ancestral, o Australopithecus Anamensis. Reza os registros dos antropólogos que este ser tinha a índole pacífica e se alimentava de frutos, sementes e raízes, e assim continuou até ao Australopithecus Boesei, que existiu há cerca de 2,4 a 1 milhão de anos. As caças a grandes e pequenos animais, começou com nosso antepassado mais recente, o Homo Neanderthalensis, que viveu entre 127 mil a 30 mil anos. Com a evolução, os humanos começaram a cultivar vegetais em espaços especialmente trabalhados para esse fim, o que acabou atraindo porcos selvagens, ovelhas, cães, cabras, aves, ratos e pequenos felinos, que pouco a pouco foram sendo domesticados. Foi nesse ponto que o homem passou a matar os animais para comer e a achar que os animais serviam mesmo para esse fim. Henrique Carneiro, historiador, professor da USP, autor e organizador de livros sobre a história da alimentação, explica que os povos da terra, após o desenvolvimento da agricultura na chamada "revolução neolítica" há cerca de dez mil anos, sempre tiveram como base de sua alimentação os produtos vegetais, especialmente os cereais. “As carnes e outros derivados animais, salvo exceções, eram em geral de consumo de elites e com rituais religiosos para seu abate e ingestão. Na Índia, ainda existe até hoje uma antiga tradição religiosa vegetariana, desde o culto jainista”, ensina.
Dentre os muitos mitos existentes com relação ao consumo de carne, está o de se dizer que o homem só evoluiu e conseguiu sobreviver graças à caça, de onde tirava nutrientes. Entretanto, Eduardo Fraccarolli Buriola, nutricionista, proprietário da Emporium Alimente, filiado à Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição – SBAN, ao Slow Food Brasil e conselheiro nacional da Sociedade Vegetariana Brasileira – SVB, explica que a evolução do homem se deu por diversos fatores, incluindo o maior aporte de calorias e nutrientes. “Os fatores mais notáveis para a evolução humana são o bipedalismo (caminhar ereto) — que o auxiliou no resfriamento do sangue cranial — e a dieta rica em calorias e nutrientes, essencial para o desenvolvimento do cérebro, de acordo com o Scientific American, de 2003. É fato que a carne foi o alimento disponível para proporcionar esse maior aporte calórico e de nutrientes, consequentemente proporcionando a evolução humana, naquela época, entretanto, vale ressaltar que se o homem tivesse acesso em quantidades adequadas de outros tipos de alimentos vegetais, estes iriam proporcionar os mesmos resultados na evolução. Além disso, o homem fisiologicamente não é carnívoro e nem herbívoro, mas sim onívoro, capaz de digerir alimentos animais e vegetais. Hoje sabemos que uma dieta baseada em alimentos de origem vegetal, apropriadamente planejada, é saudável, nutricionalmente adequada, e promove benefícios a saúde na prevenção e tratamento de certas doenças”, diz.
Recentemente o primatólogo, antropólogo e vegetariano Richard Wrangham, lançou o livro “Catching fire: how cooking made us human”, traduzido como “Pegando fogo: como cozinhar nos tornou humanos”, no qual afirma que o ato de cozinhar criou a humanidade e não o fato dos nossos ancestrais se alimentarem de carne.
Através de estudos com chimpanzés selvagens, Wrangham concluiu que quando os homens primitivos começaram a comer alimentos cozidos – há aproximadamente 1,8 milhões de anos –, sua dieta se tornou mais suave, segura e muito mais nutritiva. Em entrevista recente ao New York Times, ele revelou que o fato da dieta ter se tornado mais nutritiva, estimulou do desenvolvimento do corpo ereto e do cérebro grande associados aos humanos modernos. “Nossos ancestrais foram capazes de evoluir porque as comidas cozidas eram mais ricas, mais saudáveis e exigiam menos tempo para mastigar”, disse na entrevista.
Do Egito à Idade Média
No antigo Egito, por volta de 3200 AC, o vegetarianismo passou a ser adotado por grupos religiosos, que acreditavam que a abstinência de carne criava um poder cármico, que facilitava a reencarnação. No século III AC, na China e Japão, o clima e os terrenos eram propícios à prática do vegetarianismo. De acordo com documentos antigos, o primeiro profeta-rei chinês, Fu Xi, foi vegetariano e ensinou às pessoas a arte do cultivo, as propriedades medicinais das ervas e o aproveitamento de plantações para roupas e utensílios.
Em um livro escrito na China, de nome Gishi-wajin-den, é relatado que os povos do Japão viviam das plantações de arroz, do peixe e dos crustáceos que apanhavam e que, anos mais tarde, com a chegada do Budismo, a proibição da caça e da pesca foi bem recebida por essas populações.
Já na Índia, vacas e macacos foram adorados ao longo dos anos por simbolizarem a encarnação de divindades. Entre 264 a 232 AC, o rei indiano Asoka se converteu ao Budismo, chocado com os horrores das batalhas. Com isso, proibiu os sacrifícios de animais e o seu reino se transformou em vegetariano. O respeito aos seres vivos, pregado pela Budismo e Hinduísmo, a prática do Yoga, e a abstinência de carne são desde aqueles tempos até hoje para os indianos a melhor combinação para uma pessoa ascender a níveis espirituais superiores.
Alguns povos antigos, como os Celtas e os Astecas só consumiam carne em ocasiões especiais. Essas festas ou celebrações tinham como objetivo, além de estreitar os laços sociais, ligar o mundo humano ao dos deuses pagãos.
"No Ocidente, o vegetarianismo teve sua origem na Grécia antiga, com Pitágoras. A razão religiosa comum tanto às religiões orientais quanto a Pitágoras é a crença na reencarnação, ou transmigração das almas entre diferentes espécies animais e vegetais, também chamada de metempsicose", explica o historiador. Na cultura grega e romana, a carne realmente não era considerada como um bem tão essencial quanto os produtos da terra, como o trigo, o mel, o azeite e os cereais. O matemático e filósofo grego Pitágoras e o filósofo romano Platão pregavam a não crueldade para com os animais e a adoção da alimentação vegetariana, afirmando que o abate de animais para consumo embrutecia a alma das pessoas.
Outro povo a se posicionar a favor do vegetarianismo foi o Essênio, que viveu entre 150 AC até o ano 70 DC. Eles eram contrários ao excessivo abate de animais, feito inúmeras vezes por dia pelos antigos judeus.
O Cristianismo é um capítulo à parte. Suas raízes primitivas, com base na tradição judaica, viu no jejum da carne o melhor modo de purificar rapidamente o corpo. O jejum ainda hoje é praticado devido á tradição. A proibição de carne vermelha pela Igreja Católica Romana nas sextas-feiras, durante a Quaresma, é um exemplo disso. Antes da Idade Média, por volta do ano 200 AC, a carne era evitada como uma forma de aumentar a força de vontade para resistir às tentações, mas com o passar do tempo, o Cristianismo fez surgir a crença da supremacia humana sobre todas as criaturas. Os vegetais e cereais se tornaram, então, “comida para os animais”, e somente a pobreza podia obrigar as pessoas a substituírem a carne pelos vegetais. A carne era o símbolo de status da classe alta. Quanto mais carne uma pessoa pudesse comer, mais elevada era a sua posição na sociedade. Durante a Idade Média, todos os seguidores das filosofias que eram contra o abate e abuso dos animais, eram considerados fanáticos, hereges e frequentemente queimados vivos pela Inquisição. Pelo menos um grande vegetariano conseguiu escapar de suas fogueiras: São Francisco de Assis.
Carneiro explica que na Idade Média, além dos indianos jainistas hinduístas e depois budistas, os povos que praticaram o vegetarianismo foram os adeptos da heresia cristã dos Cátaros, na Baixa Idade Média, na região atual do sul da França.
Razão e emoção no trato para com os animais
Na época do Renascimento, o cenário voltou a ser propício aos ideais vegetarianos. A carne se tornou escassa, e considerada um luxo só para ricos. A fome e as doenças imperavam, assim como as colheitas de vegetais, que começaram a parecer preciosas, dado a escassez. A solução para esses problemas foi a conquista conturbada de novos territórios, que trouxe diferentes culturas de vegetais para a Europa. A batata, a couve-flor e o milho foram acrescentadas à alimentação e trouxe imensos benefícios a todos. O Iluminismo, no século XVIII, foi ainda mais importante para o vegetarianismo. Novos argumentos de que os animais eram criaturas inteligentes e sensíveis começaram a ser colocados em pauta. Até nas religiões ocidentais houve um ressurgimento da ideia de que, na realidade, o consumo de carne ia contra a vontade de Deus e contra a genuína natureza da humanidade. Uma obra de nome The Rights of Man, escrita em 1791, despertou muitos debates a respeito dos direitos dos animais. Foram muitos os vegetarianos que se destacaram nesse período. Entre eles os filósofos: Voltaire, Rousseau e Locke, que questionaram a relação entre homens e animais.
Foi somente no século XIX, de acordo com Carneiro, que a noção de respeito aos animais e a natureza veio à tona. “Um livro intitulado "O Homem e o Mundo Natural", escrito por Keith Thomas, deu início a essa idéia”, explica.
Nesse século, o vegetarianismo começou a ser difundido pela Europa e América, a começar pela Inglaterra e Estados Unidos, através de cristãos radicais. Esses fundamentalistas cristãos saíram das zonas urbanas carentes para o mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, essas comunidades vegetarianas eram formadas majoritariamente por Adventistas do Sétimo Dia. Por volta de 1880, os restaurantes vegetarianos eram populares em Londres e ofereciam refeições boas e baratas.
Já no século XX, durante a Segunda Guerra Mundial, devido a escassez de alimentos, os britânicos foram encorajados a “Escavar para a Vitória” (Dig For Victory), e começaram a cultivar seus próprios vegetais e frutas. O resultado dessa dieta vegetariana “forçada” foi uma melhora significativa na saúde da população durante os anos em guerra. A partir da segunda metade do século XX, surgiu um fenômeno agropecuário industrial que estabeleceu um novo modelo de dieta, baseada excessivamente em carnes e gorduras animais, carboidratos e açúcar. “Essa dieta "fast food" é correlata a um modelo agropecuário predatório, de desflorestamento, monoculturas e consumo excessivo de fertilizantes e agrotóxicos, que é profundamente antiecológica”, analisa Carneiro.
Entre os anos 1950 e 1980, o vegetarianismo passou a ser visto como opção alimentar dos alternativos, religiosos ligados a religiões orientais, bichos-grilos e pessoas fora de moda. Durante a década de 1990, o vegetarianismo ganhou um novo impulso, quando matérias sobre a devastação da Amazônia, entre outras áreas naturais, além dos problemas de saúde e obesidade ligados ao consumo de carne começaram a ser divulgadas pela mídia massiva. Entretanto, mesmo com todas as notícias contra a carne e com todas as catástrofes naturais a que estamos assistindo atualmente, a pressão das potentes indústrias ligadas à carne e aos laticínios é ainda muito forte na população. Hoje em dia, as criações intensivas fazem com que a carne seja acessível a todas as camadas da população. De acordo com Carneiro, a ingestão de carne pelas populações pobres é um acontecimento realmente muito recente. “A carne sempre foi tida como o mais substancioso dos alimentos, e privilégio dos nobres, assim seu valor simbólico é muito grande. Hoje, a busca por um menor consumo de carnes e produtos industriais, a procura por produtos orgânicos e a recusa ao modelo fast food são partes indispensáveis de uma mudança de mentalidade em relação às formas de se alimentar e a forma de se produzir alimentos, que consiste em última instância numa crítica ao modelo capitalista predatório e perdulário vigente no cenário internacional contemporâneo.”
Atualmente, a maioria das pessoas se alimenta de carne sem saber realmente de onde ela vem. Muitos nem se preocupam em saber como os animais foram tratados até serem abatidos e não sabem a que preço a carne é “produzida”. O desmatamento das florestas, o aumento da predisposição de doenças por conta dos hormônios dados ao gado na alimentação, são alguns dos preços que se paga pela atual cultura. Para Buriola, a maioria das pessoas, senão todas, precisam de um motivo para mudar seus hábitos alimentares, que podem ser preocupação com meio ambiente, questões éticas ou religiosas, motivos de saúde, padrão econômico e social, dentre outros. “Infelizmente grande parte da população só muda os hábitos alimentares inadequados quando a causa deste já é eminente, poucos mudam como forma preventiva. Eu aposto muito na educação nutricional feita com crianças como uma ferramenta para mudança de hábitos alimentares, principalmente quando ela é feita ainda dentro da escola e reforçada pelos pais em casa, afinal as crianças nunca foram boas em ouvir, mas sempre foram ótimas em imitar”, constata o nutricionista.
Ele diz ainda que,com o avanço de novas metodologias, a ciência da nutrição evoluiu e alguns conceitos se modificaram, mas infelizmente alguns profissionais nutricionistas ainda carregam conceitos antigos, como a necessidade indispensável da carne para uma dieta ser adequada. “O pesquisador Joan Sabaté publicou em 1999 um artigo sobre o interesse cientifico em dietas vegetarianas. Ele demonstrou que nos anos 60, menos de 10 artigos por ano, que tinham como foco o questionamento da adequação da dieta vegetariana para a saúde humana, foram publicados. Já nos anos 90 o número de artigos publicados por ano aumentou para 76 e o mais importante é que o foco mudou, passou de um questionamento da adequação nutricional (anos 60) para dietas vegetarianas na prevenção e tratamento de determinadas doenças. Costumo dizer que nenhum alimento contém todos os nutrientes, assim como nenhum nutriente está em apenas um alimento. Portanto o consumo de carne, não irá determinar a adequação de uma dieta e sim todos os alimentos inseridos dentro da alimentação”, finaliza Buriola.
Todas as explicações acima sobre o histórico dos hábitos alimentares humanos e com todas as notícias que vemos diariamente sobre o crescimento da população global, o que se pode concluir é que do jeito que está, não se pode ficar. É importante todos ficarem munidos de informação e passar adiante a preocupação com o planeta. Mudar o modo de vida predador atual é sim a chave para a humanidade sobreviver por mais tempo nesse lindo local chamado Terra. E é por tudo isso que as idéias e ideais vegetarianos tem mesmo de ser seguidos, afinal, estamos na moda! É sustentável e imprescindível o vegetarianismo. Ainda bem que muitos já se conscientizaram de que o futuro das novas gerações depende de atitudes corretas para com o meio ambiente e para com nós mesmos.
Fonte da pesquisa histórica: site :www.centrovegetariano.org
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